Linchamento é justiça?

Por que, diante da violência, apela-se para a barbárie?

No dia 17 de setembro, Deivid Duarte da Silva, aos 20 anos, foi espancado até a morte em um posto de gasolina no bairro do Aririú, em Palhoça. Enquanto parava para abastecer o carro, a vítima foi abordada inicialmente por três homens que o agrediram por 40 minutos com socos, chutes e capacetes. Testemunhas relatam que cerca de 10 pessoas participaram do linchamento. Pessoas que tentaram conter a agressão contam que  foram ameaçadas pelos agressores. Uma câmera de segurança registrou a ação.

A irmã de Deivid passava pelo local de ônibus quando viu o movimento e reconheceu o carro. Um dos passageiros comentou sobre a agressão que estava acontecendo e  imediatamente ela desembarcou do ônibus. Ao chegar no local estavam tentando reanimá-lo, mas, sem sucesso, ele veio a óbito.

O motivo dado à agressão foi que Deivid teria participado do roubo de um carro na noite anterior ao assassinato. Os homens identificados pela câmera de segurança foram presos em flagrante e serão indiciados por homicídio qualificado. Um mês após o crime, a polícia ainda investiga os outros suspeitos do linchamento.

Na noite do assalto ele havia jogado futebol com os amigos. De acordo com um familiar, a vítima teria recebido a visita de um colega, pedindo para que ele fosse até um determinado local — a família não soube informar onde seria. 

Devid trabalhava em uma empresa de lavação de automóveis. Deixa um filho de um ano e cinco meses. Ele não tinha registro de passagem pela polícia. 

Quando a população vira júri, juiz e executor

A partir da indignação e em busca de uma punição rápida, pessoas se juntam para linchar autores de supostos crimes como forma de justiça. Na América Latina, o linchamento é mais comum do que se imagina. Em 2016, o observatório de pesquisa Barómetro de Las Américas indicou que na América Latina os linchamentos contam com a aprovação de 32,1% – o índice no Brasil é de 23,5%. No Brasil, há pelo menos um linchamento por dia que acontece a partir de rumores espalhados pelos bairros da cidade em que o suposto criminoso vive e/ou pelas redes sociais. Após os linchamentos, os agressores expõem fotos e vídeos da vítima, apontou o observatório.

No dia 5 de maio de 2014, um boato nas redes sociais resultou na morte de Fabiane Maria de Jesus. Ela foi espancada até a morte, por moradores de Guarujá em São Paulo, após divulgarem no Facebook que ela praticava magia negra com crianças. Nas redes sociais pessoas fizeram relatos mentirosos alegando que a viram sequestrar vítimas. Outro caso em que a população resolveu fazer justiça com as próprias mãos foi com o jovem Ruan Rocha da Silva, que na época tinha 17 anos. Ele teve a testa tatuada com os dizeres “Sou ladrão e vacilão”. Após uma suposta tentativa de furto de uma bicicleta, o adolescente foi torturado enquanto era filmado pelos agressores. O vídeo logo se espalhou pela internet e familiares de Ruan o reconheceram, encontraram o filho dias depois dormindo numa das ruas da cidade, ele estava muito desnorteado. O agressor foi localizado, denunciado e preso.  

Assalto x Assassinato

No caso de Deivid, as investigações da Polícia Civil apontam que o assassinato já era premeditado. O jovem foi seguido até o posto pelos agressores. A suspeita é de que os homens passaram a monitorar a vítima após o suposto assalto na noite anterior. No início deste mês, a Justiça aceitou a denúncia contra os linchadores. O trio responde por homicídio duplamente qualificado. 

Ao conferir o Código Penal pode-se comparar a pena de um roubo com a de um assassinato:

Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
Art 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos. § 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

A pesquisadora da USP, Ariadne Natal, afirma que cometer o ato de linchamento é desproporcional ao crime cometido, por exemplo, diante de um roubo uma pessoa ser morta. Para ela é uma forma completamente torta de dar um resposta ao sistema de justiça.

Estado de direito

Cada ser humano tem suas individualidades, liberdade e espaço. Para manter um controle é necessário um sistema institucional. Sem Estado de Direito não há democracia possível, então é necessário o uso de normas que garantem ao ser humano um convívio justo em sociedade.

A necessidade de uma Constituição, a separação dos poderes, a garantia de direitos, o limite que um cidadão tem em relação a atuação contra outros cidadãos são conquistas modernas e que constituem a parte central do Estado de Direito.

Houve um longo caminho até a consolidação desta lógica, a prática medieval tinha o costume de matar todos que não concordavam com certos costumes da sociedade, quem ia contra o que era considerado certo na Idade Média. A noção de Estado de Direito materializa e institucionaliza um determinado espaço em que a sociedade pode construir uma democracia.

Para relacionar o Estado de Direito com o linchamento de Deivid, é importante lembrar que temos uma constituição, por maior dos crimes que o jovem houvesse cometido, há um sistema judiciário que se responsabilizará para julgar a punição necessária. 

Discurso de Ódio

No Brasil, o Art. 3 da Constituição Federal define que o objetivo da República Federativa do Brasil consiste em “IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Então, a proibição de discurso de ódio está garantida pela Lei 7.716/89, que proíbe “Praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, por religião, etnia ou procedência nacional.”

Ainda assim em poucos minutos acessando notícias sobre gêneros, raças, classe social e principalmente matérias sobre criminosos o discurso de ódio é assustador. Pessoas que se autodenominam “cidadãos de bem” ou “família tradicional brasileira” promovem  frases preocupantes. Na notícia sobre o linchamento de Deivid não foi diferente, os comentários eram parecidos. Falavam sobre “CPF cancelado” – termo usado para afirmar que um criminoso foi morto, “bandido bom é bandido morto” e as mais variadas opiniões de juízes de internet.

A pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Ariadne Natal, conclui que a insegurança e o medo são reais e é legítimo buscar reforços e querer se sentir seguro, só que este não parece o melhor caminho porque ele não promove mais segurança, na verdade promove mais insegurança porque é mais violência circulando na sociedade. Em meio a tanta impunidade a sociedade se sente no direito de fazer justiça com as próprias mãos e muitas vezes optam pela barbárie. É preciso buscar alternativas para o problema de criminalidade e segurança pública. É necessário fazer uma maior discussão com a sociedade à respeito da gravidade desse tipo de ação – linchamento.

Chayene Ribeiro

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